quarta-feira, 24 de novembro de 2010

“O que vamos dizer ao Senhor?”

Para o pastor Josué Martins dos Santos, a Igreja brasileira tem pecado pela omissão na obra missionária.
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Por Marcelo Barros

Quando se trata de missões, o pastor Josué Martins dos Santos não está para brincadeira. Profundo conhecedor do assunto, ele fala com a paixão de quem se dedica à obra missionária há mais de 30 anos. “É impossível ser um pastor de ovelhas e não se importar com aqueles que vão para o inferno porque o Evangelho não lhes está disponível”, sentencia. Para ele, não há justificativa para a igreja que não se envolve com a pregação da Palavra até os confins da Terra, como ordenou Cristo. “Temos um tremendo potencial espiritual, numérico, econômico e vocacional”, argumenta. “Mas, mesmo com 40 milhões de evangélicos, não somos uma Igreja missionária porque estamos em pecado, doentes, não temos santidade.”

Paulista de Santos, 58 anos de idade, Josué é ligado à denominação Batista e preside a Missão Avante, entidade que atua junto às igrejas na questão do despertamento, preparo e envio de novos obreiros. Foi com essa disposição no coração e com a experiência de quem tem posto a mão no arado – e também com uma boa dose de sinceridade – que o pastor Josué respondeu às perguntas formuladas por CRISTIANISMO HOJE:

CRISTIANISMO HOJE – Muitos dizem que, antes de se fazer missões transculturais, é preciso evangelizar o Brasil. O que o senhor pensa sobre isso?

JOSUÉ MARTINS DOS SANTOS – É preciso deixar bem claro que, em nosso país, o Evangelho já está disponível a todos os brasileiros, com exceção de uma parte das áreas indígenas. Portanto, a prioridade missionária da Igreja brasileira não pode ser o Brasil.

Como tem sido a atuação brasileira nos campos transculturais?

Ouvi de um líder indiano a seguinte declaração: “Vocês, brasileiros, têm entusiasmo, alegria e sabem fazer amigos, mas algo está errado. Vocês não estão plantando igrejas autóctones "que sejam adaptadas a região ou cultura local", e isso é uma falha”. De fato, o trabalho missionário é este – plantar novas igrejas que sejam autóctones entre o povo que está sendo alcançado. A igreja que será plantada em outra cultura precisa ser autogovernada e auto-sustentada. Deve ter uma “cara” local e poder, sozinha, evangelizar seu próprio povo. Se não for para gerar igrejas autóctones entre o povo a ser alcançado, então não há necessidade de missionários naquela cultura.

E os brasileiros não fazem isso?

Os missionários brasileiros trabalham de forma descontextualizada. Nossa eclesiologia precisa ser repensada. Como Igreja, continuamos à procura de modelos importados, de pacotes prontos. A Igreja brasileira não sabe quem ela é e também não sabe para quê existe; somos superficiais e nossa profundidade bíblica é a de um pires. Muitos missionários brasileiros chegam ao campo e sua primeira iniciativa é procurar um salão ou local para reuniões, equipá-lo e colocar uma placa com o nome do feudo eclesiástico a que pertencem. Essa prática nada tem a ver com missões transculturais; é uma repetição do modelo americanizado e de outros sistemas que erroneamente se preocupam com o crescimento quantitativo, e não qualitativo. A pregação do Evangelho, em qualquer cultura, deve gerar uma conversão genuína e um crescimento saudável. Mas uma boa parte dos missionários brasileiros que trabalham em outras culturas não estão evangelizando nem discipulando. Isso ocorre porque os missionários são produtos da sua igreja local; eles repetem no campo o modelo onde foram gerados na fé.

Mas a falha, então, é de quem envia...

Claro. A corrida pelos resultados numéricos nos campos acontece porque a igreja que envia, ou a organização parceira, precisa apresentar resultados para justificar, digamos assim, o investimento feito. Cada um está competindo para abrir mais campos missionários que as outras denominações e organizações. O negócio é estabelecer sua placa em mais lugares. O comportamento de muitas igrejas com seus missionários é semelhante ao trabalho escravo: exige-se tudo e investe-se uma miséria. Em razão disso, há missionários abandonados, com baixos salários, doentes, desanimados, frustrados, largados nos campos. Muitos não voltam por vergonha e medo de enfrentar os “coronéis” que os enviaram mas nunca os visitaram. Isso é uma pseudovisão missionária.

Além dessa excessiva vinculação denominacional, quais são os outros equívocos?

Há um bom número de missionários brasileiros trabalhando com a nova onda do Evangelho integral. São obreiros envolvidos em projetos sociais, esportivos e educacionais, mas que não estão evangelizando e discipulando os locais. Estão curando as pessoas, ensinando práticas comunitárias, trabalhando com crianças abandonadas – porém, não estão plantando igrejas. Afinal, o que é o trabalho missionário? Ora, o Evangelho é integral em si mesmo, mas em muitos lugares os missionários cuidam de coisas e estruturas, mas não têm tempo para cuidar de vidas. Nosso chamado fundamental é para salvar pessoas e levá-las ao céu.

Os enviados são mal escolhidos?

O problema é que enviamos pessoas que eram líderes em nossas igrejas. São pastores, professores de Escola Bíblica, músicos, enfim, pessoas que exercem uma série de funções eclesiásticas, mas que nunca evangelizaram, nunca discipularam. Gente que tinha cargo na igreja, mas não tinha ministério. Sua atividade não era com pessoas, no sentido de restaurar e capacitar outros para o serviço cristão. Porém, em nossa visão equivocada de reconhecer um obreiro aprovado, enviamos gente com base no seu ativismo e na religiosidade. Nestes últimos 22 anos, tenho visitado muitos campos missionários. E encontro pessoas brincando de fazer missões, com motivações equivocadas, fazendo da obra um trampolim para alcançar seus interesses. Há missionários nos campos que nunca se submeteram a ninguém, não respeitam a liderança nacional existente e também não respeitaram os missionários que já estavam trabalhando ali antes deles. Parte dos nossos missionários comporta-se de forma ufanista, crendo que já sabem tudo, conhecem tudo e não precisam de ajuda de ninguém. Isso é soberba, é pecado.

Há problemas na formação dos obreiros?

Eu creio que sofremos da síndrome da Coréia, onde a preocupação maior era com a capacitação acadêmica. Ninguém poderia ser enviado se não recebesse um sólido preparo teórico. Hoje, no Brasil, temos centenas e centenas de acadêmicos de missões, mas não temos missionários para enviar. Aqui, temos muitos doutores em missões que nunca visitaram um campo missionário, nunca pastorearam, nunca deram um centavo à obra; no entanto, estão escrevendo e ensinando sobre missões. São os burocratas em missões. Em outro extremo, enviamos pessoas analfabetas de Bíblia, frutos de uma educação missiológica deficiente e de uma formação acadêmica mais voltada para a defesa da fé denominacional do que do Evangelho. Em razão da inexistência de um treinamento bíblico, missiológico e antropológico equilibrado e sadio, a Igreja brasileira enviou gente que cria que, pelo fato de ser batizada com o Espírito Santo e falar em outras línguas, estava capacitada. Outros iam para o campo porque eram bons soldados denominacionais, acreditando que conhecer as doutrinas e a visão de seu grupo seria suficiente para a realização da tarefa. Assim, enviamos pessoas que não tinham um caráter restaurado e por isso pecaram no campo, quebraram suas famílias, envolveram-se com coisas escusas. Em determinados locais, esses desacertos prejudicaram o trabalho missionário como um todo e a comunicação do Evangelho levou anos para ser restaurada, com conseqüências até hoje.

Estima-se que o Brasil tenha hoje algo em torno de 40 milhões de evangélicos. Por que o país não é a maior potência missionária do planeta?

Creio que existem três questões fundamentais para tal paradoxo. Primeiro, a nossa teologia não é cristocêntrica. Estudamos teologia e não percebemos que a Bíblia foi escrita em razão do projeto missionário de Deus. Isso revela que a nossa exegese do texto não está clara. Nós estamos apenas repetindo o modelo de teologia sistemática que recebemos; não fizemos nenhuma reflexão sobre o que cremos. Quando nossos irmãos e irmãs terminam seus cursos de teologia, o que receberam da parte do Senhor? No que crêem? Certamente, não crêem na Bíblia, pois com 180 mil igrejas evangélicas no país, o número de missionários não cresceu, os vocacionados para missões transculturais desapareceram, o dinheiro para missões não chega aos campos. A segunda questão é moral – não há santidade no ministério e na liderança. Pastores e líderes estão envolvidos com todo tipo de sujeira e coisas escusas. Vemos casamentos quebrados, pastores divorciados indo para o segundo, terceiro, quarto matrimônio. Pastores e líderes estão envolvidos com imoralidade e pornografia, fazem da igreja uma escada para conquistar poder e dinheiro. Como uma igreja com esse perfil de liderança vai evangelizar o mundo perdido? Missões resultam de uma vida santa e piedosa. A vocação missionária é resultado da intimidade com Deus.

E quanto à terceira questão?

A terceira está relacionada ao foco ministerial de cada pastor e igreja. Este foco está errado. Estamos construindo grandes templos, estruturas enormes, sem nos perguntarmos por que estamos investindo milhões naquilo que nosso Senhor não mandou fazer. Para algumas mentes doentias, o pastor bem-sucedido é aquele que reúne o maior número de pessoas no domingo à noite ou tem a maior igreja da cidade. Não importa o estado das ovelhas, não importa se as famílias vão bem, não importa se as atitudes são espúrias. Contanto que a igreja cresça, “Deus está abençoando”. As igrejas cheiram mal e ouvimos os ufanistas dizerem que “o Brasil é do Senhor Jesus”. Quantos somos realmente? Podemos ser 40 milhões, mas não somos uma Igreja missionária porque estamos em pecado, doentes, não temos santidade.

Qual sua expectativa acerca do 5º Congresso Brasileiro de Missões, o CBM, que acontece agora em outubro, em São Paulo?

Vamos participar do 5º CBM e nossa expectativa é ver uma ação do Espírito Santo trazendo um real e verdadeiro retorno ao compromisso com o término da tarefa proposta em Mateus 28.18 a 20. Para isso, precisamos de quebrantamento, confissão, arrependimento, perdão e restauração; se isso acontecer, então o fogo do Espírito Santo virá sobre nós. Todo movimento missionário na história da Igreja, desde Atos, foi fruto do derramar do fogo do Espírito Santo no coração de homens e mulheres que tinham fome e sede de Deus. E nós podemos fazer mais, muito mais. Temos um tremendo potencial espiritual, numérico, econômico e vocacional. Mas, se não houver um retorno à visão de Deus para os povos não-alcançados, a nossa parte em missões será dada a outras nações. Temos homens e mulheres de Deus realizando um trabalho sério e pagando um alto preço para obedecer ao Senhor em todos os continentes. A questão é se queremos pôr a tarefa de missões como prioridade em nossa vida, ministério e igreja. Se a igreja não prega o Evangelho aos que não o ouviram, ela está em pecado. Se o pastor não tem no coração uma profunda compaixão pelos perdidos, quero encorajá-lo a deixar o ministério e fazer outra coisa. É impossível ser um pastor de ovelhas e não se importar com aqueles que vão para o inferno porque o Evangelho não lhes está disponível. O que vamos dizer ao nosso Senhor no dia da prestação de contas?


Chamados para fora

A Igreja precisa passar por uma auditoria para se reencontrar e assim retomar a sua caminhada.



O doutor em teologia e escritor Robert C. Linthicum, especialista em missões urbanas, tem uma abordagem muito específica sobre o comportamento da Igreja frente à sua missão. Em seus estudos, ele descreve o que seriam igrejas urbanas eficazes e avalia quais seriam as marcas dessas experiências em diversas cidades do mundo. Neste contexto é que ele defende a tese de que comunidades cristãs eficazes na cidade compreenderam que “a igreja que quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas a igreja que perde sua vida por Cristo e por amor do Evangelho, salvá-la-á.” Fica caracterizado como força deste argumento que a igreja deve viver para o mundo, e não para si. Viver para si seria esperar que tudo e todos convergissem para os seus espaços e programas. Mas o proposto é o convite a que a igreja reconheça que seu campo de atuação não se restringe aos seus espaços nem aos seus programas. Noutros termos, igreja seria sinônimo de “chamados para fora”.

Em termos práticos, a proposta é para que todas as estruturas eclesiásticas sejam sujeitas à missão. O fatal é quando submetemos a missão às estruturas e confundimos igreja com o nosso quintal. Mas, quando temos a missão como norteadora dos nossos atos, tratamos as estruturas eclesiásticas sem tanta parcimônia. Acontece que a Igreja é uma idéia divina, mas ao mesmo tempo uma realização humana. Como idéia divina, ela tem origem e destino eternos. Deus a idealizou assim – e, como escolheu Abraão para abençoar a todas as famílias da terra, projetou a Igreja para abençoar o mundo. E o fez em termos de princípios e propósitos – nos quais ela é uma e sempre será a mesma –, e jamais como uma estrutura pronta e acabada.
 A igreja se comunica com o mundo à sua volta sempre em perspectiva cultural, embora sua essência seja divina. E as estruturas eclesiásticas serão tantas quantas forem as experiências de cada grupo e a necessidade de se alcançar cidades e sociedades. O problema é quando, por apego às suas instituições, as igrejas deixam de ser Igreja de Cristo para se transformarem em meras estruturas compactas. É por isso que as igrejas que querem viver para si acabam por perder-se, enquanto que as congregações que vivem para o mundo se salvam. Necessariamente, a vida da igreja é encontrada no cumprimento da missão de doar-se para o mundo. Ou seja, cabe à igreja seguir os passos de Jesus.

As estruturas religiosas rigidamente erguidas não puderam tolerar a presença de Jesus, que propunha o serviço àqueles para quem a porta do templo não se abria. Aí se incluíam os abandonados, as prostitutas, os gentios, os publicanos e pecadores de todo tipo. Entre ficar dentro dos templos, protegido pelos guardiões do sagrado, e sair para servir à humanidade, o que o Filho de Deus preferiu? Daí, sua afirmação categórica: “Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de mim, esse a salvará.”

É impressionante o número de pastores que hoje vivem para carregar as estruturas eclesiásticas, sem tempo e sem forças para pastorear as pessoas – da mesma forma que a quantidade de crentes que afluem dominicalmente para os templos por um simples sentido de dever ou por um hábito enraizado. É também impressionante como empresários conseguem reduzir as igrejas evangélicas a um nicho de mercado, transformando até as lágrimas e os suspiros do povo em produtos. E o que dizer da arrogância das chamadas confissões históricas, que justificam o seu distanciamento do mundo real com a desculpa pálida de que não são deste mundo, preferindo um amálgama da cultura eclesiástica à fluidez da cultura popular brasileira?

Seria ótimo se o ato de ir à igreja representasse a promoção de encontros em que a vida real não fosse deixada do lado de fora daquelas quatro paredes. Então, as pessoas que para lá acorressem iriam em busca de um lugar de vida, de encontros humanos; um lugar de pulsação e criação, em que o derramamento do Espírito Santo permite que cada um ouça o Evangelho em sua própria língua e saia a anunciar o Reino de Deus ao mundo. A Igreja Evangélica em solo brasileiro precisa passar por uma auditoria para se reencontrar e assim retomar a sua caminhada. Caso contrário, será apenas uma pretensa guardiã dos mistérios divinos, como um antiquário espiritual, enquanto Cristo estará do lado de fora, à sua porta, batendo. Não, a igreja não é guardiã do sagrado; ela é a comunidade da partilha.


Valdemar Figueredo